Eleições em Fortaleza: sintomas da realidade do Brasil
Por Ygor Coelho*
A
cidade de Fortaleza, quinta maior do país e segunda mais desigual da América
Latina, teve neste mês uma das campanhas mais apertadas do País, bem como uma
das mais surpreendentes em relação às pesquisas, o que tem gerado uma onda de
críticas e até pedidos de anulação do pleito nas redes sociais e entre
políticos do PDT do candidato Heitor Férrer. Elmano (PT) teve 25% dos votos,
Roberto Cláudio (PSB), 23%, e Heitor Férrer, 21%.
A
cidade se mostrou nitidamente dividida igualmente em três zonas distinguíveis
entre si também pelo aspecto socioeconômico. A Zona Leste de Fortaleza, que
inclui novos bairros da classe média e alta e também bairros da classe média
baixa, deu mais votos a Roberto Cláudio. A Zona Central, coração da área nobre
tradicional – não a nova – e de bairros antigos e mais degradados como o
Centro, foi com Heitor Férrer. A Zona Oeste, por sua vez, abrangendo ainda
parte do sul do município, a área mais pobre e historicamente esquecida da
cidade, foi com Elmano.
Houve
uma divisão interessante, porque, embora a tendência tenha sido de os mais
pobres votarem mais no PT e os mais ricos votarem mais no PSB, o fato é que a
própria “metade rica” (na verdade classe média com bolsões de riqueza)
divergiu: a zona “novíssima”, onde estão crescendo aos montes os grandes
condomínios e lojas de departamento, ficou com o candidato do governador,
jocosamente referido pelo ácido humor cearense com apelidos “carinhosos” como “Pinguim”,
“Zacarias”, “Bolinha” e “Tamborete de Forró”; ao passo que o que é o centro histórico
e geográfico da cidade, a incluir tanto o degradado Centro como as nobres
Aldeota, Meireles, Fátima e Dionísio Torres, ficou com a “terceira via”
autoproclamada por Heitor Férrer.
Pode-se
ver que Fortaleza, representando num microcosmo o Brasil inteiro, anda dividida
em verdadeiros setores geográfico-econômico-culturais. É como se houvesse até
mesmo uma classe média “tradicional”, que mora numa parte da área urbana já
consolidada e se quer ver como independente e progressista, que é como o Heitor
se apresenta; e há uma outra classe média mais e mais concentrada na Zona
Leste, área em constante urbanização e talvez tendente a uma estrutura mais
isolacionista e de elite (ou que se pretende de elite), votando no candidato do
PSB, que é muito bem visto pelo empresariado e tem uma das campanhas mais caras
do Brasil.
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| Retirado do site: dialogospoliticos.wordpress.com |
Por
fim, tem-se a periferia, principalmente a da Zona Oeste, que concentra a
maioria dos cidadãos e a minoria dos investimentos, e que votou mais no Elmano,
referido por tantos críticos como o “Poste”. O petista concentrou mais votos
justamente na Barra do Ceará e no Pirambu, não à toa as áreas mais beneficiadas
pelas obras da prefeita Luizianne Lins naquela região do município.
Isso
sugere que a percepção de desastre da gestão do PT em Fortaleza – que pareceria
ubíqua se o mundo fosse o Facebook –
afetou mais as classes médias e alta. Estas se preocupam muito mais com
segurança pública, trânsito (sobretudo para seus veículos particulares),
qualidade do asfalto e equipamentos urbanos, claramente pesos negativos na
administração de Luizianne Lins. Por outro lado, a população pobre parece ter
uma visão um tanto distinta, de um governo insuficiente, mas que deu mais
atenção aos seus bairros.
Um leve
esforço de compreensão, e não de julgamento, pode auxiliar a entender a
dinâmica destas eleições e os meios de conquistar o eleitorado para a
candidatura ou a ideologia preferencial de cada um. Os valores e os interesses
prioritários mudam de acordo com a realidade conhecida pelo cidadão. A classe
média só pode mesmo dar prioridade à sensação de segurança (não obstante seja
de competência do Estado, e apenas em termos indiretos do município), às
complicações do tráfego resultantes em boa parte da enorme expansão da frota
viária (um “problema do desenvolvimento” causado pela expansão do crédito e da
classe média) e à má qualidade do asfalto urbano.
Ora,
essas pessoas em geral possuem emprego formal, moradia própria, educação e
saúde privadas, veículo próprio, pontos de lazer acessíveis a seu padrão de
renda. A preocupação com os serviços públicos pode ser-lhes cara, mas não é um
ponto de afetação direta em suas vidas. Ademais, não foi na esfera de
preocupações da classe média que ocorreram as maiores melhorias do município e
do País na última década, inclusive porque algumas dessas conquistas se deram nas
questões mais básicas da cidadania e da inserção no mercado de consumo.
Ao
revés, a maioria da população, ainda presa à pobreza, tem menos educação formal
e menos acesso à informação, o que inegavelmente lhes atrapalha a decisão
consciente de seu voto. São também pessoas que, sobretudo há menos de duas
décadas, tinham de ter preocupações muito mais frequentes com questões de
sobrevivência e dignidade mínima. Estão muitíssimo mais próximas do ponto em
que se conquista o mínimo vital e se adentra primeiro no mercado consumidor.
É
sensato, ao menos, antes de apontar dedos e “cobrar” explicações pelo seu voto,
levar em consideração a possibilidade de que a população pobre realmente sinta
que melhorou muito de vida simplesmente porque ainda é pobre o bastante para
ainda estar preocupada com aspectos básicos que, de fato, melhoraram
rapidamente na cidade e no Brasil, nos últimos anos: emprego, mortalidade
infantil, acesso à educação básica, redução da desigualdade de renda, expansão
do mercado consumidor, aumento de renda sobretudo nas classes mais baixas, etc.
Esses eleitores, embora pobres e pouco escolarizados, não estão sendo “burros”,
mas apenas, tanto quanto a classe média, votando de acordo com seus interesses
e sua realidade prévia e atual.
É uma
pena que as “análises” (sim, entre aspas) de muitos eleitores nas redes sociais
e espaços de comentários em jornais na internet
tenham tido tão pouca disposição em procurar entender os motivos e as
realidades que impulsionaram a configuração dos votos como se deu neste início
de outubro. De repente, descobrimos que também a nordestina, gaiata Fortaleza
está repleta de suas aprendizes de Mayara Petruso (a hoje notória estudante
xenófoba de São Paulo processada quando das eleições presidenciais de 2010). A
bem da verdade, não se verificou nada tão acintoso quanto a malfadada estudante
disse, mas as reações diante da legítima escolha dos fortalezenses penderam
para o tipo de desprezo pela escolha do povo pobre, a crença de que políticas
públicas benéficas aos pobres “compram” seus votos embora qualquer pessoa da
classe média ou alta jamais se imagine sendo “comprada” em virtude de medidas
do Estado que lhe beneficiasse diretamente.
Em
resumo, revelou-se mais uma vez a noção de que o pobre tem um voto menos válido
ou, no mínimo, é intrinsecamente diferente das demais pessoas quando intervém
nos processos coletivos. Infelizmente, muitos eleitores não quiseram refletir
sobre o que “faltou” para conquistar mais votos para seus candidatos ou
partidos, o que poderia ajudar no próprio êxito futuro deles nas eleições vindouras.
Nada
como uma disputa eleitoral acirrada para demonstrar o parco espírito
democrático de muitos, que, na maioria involuntária e inconscientemente, seguem
à risca a genial ironia de Millôr Fernandes: “democracia é quando eu mando em
você, ditadura é quando você manda em mim”.
Seria interessante ter em mente, sempre que a crítica às escolhas
eleitorais dos pobres nos vem à garganta, que o único meio legítimo de evitar
isso é este: se é para os pobres não decidirem as eleições por mera força
numérica, lute muito e eleja conscientemente aqueles que reduzam mais a
população pobre a tal ponto que ela passe a ser minoria. Então,
certificar-nos-emos de que a classe média decidirá as eleições.
*Ygor Coelho Soares é advogado (OAB/CE 26.289) e graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

