sábado, 27 de agosto de 2016

FAMÍLIAS VERSUS ESTADO: quem tem o poder direitivo sobre a educação das crianças?

FAMILIES VERSUS STATE: who has the direct power over the education of childen?

Autora: Fernanda Bezerra Martins Feitoza[1]

RESUMO:

Em 2014, o Ministério da Educação enviou ao Congresso Nacional o Plano Nacional de Educação (PNE), documento com diretrizes que regerão a educação brasileira pelos próximos dez anos.
Tal documento continha diversas expressões de gênero, tais como “identidade de gênero” e “orientação de gênero”, expressões que causaram uma reação da ala mais conservadora do Parlamento, por entenderem que estas abririam espaço para uma doutrinação ideológica de crianças e adolescentes dentro do ambiente escolar. Tais expressões foram removidas do PNE, e o texto foi aprovado sem nenhuma menção à “gênero”.
Já em 2015, os municípios brasileiros aprovaram seus Planos Municipais de Educação e, na maioria deles, sem expressões de gênero.
Mas, no que consiste realmente a ideologia de gênero? Quais suas consequências para a sociedade? Os pais e professores têm o direito de negar ao Estado o ensino dessa ideologia?
É o que pretendemos esclarecer através do presente trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Ideologia de gênero. Educação. Família

ABSTRACT:

In 2014, the Ministry of Education sent to the National Congress the National Education Plan (PNE), a document with guidelines that will govern the Brazilian education for the next ten years. 
This document contained a number of gender expressions, such as "gender identity" and "gender" orientation, expressions that caused a reaction from the more conservative wing of Parliament understand that these would open space for an ideological indoctrination in children and adolescents within the school environment. Such expressions were removed from PNE, and the text was approved without any mention of the "gender".
As early as 2015, the Brazilian municipalities have approved its municipal education Plans and, in most of them, without gender expressions.
But, what is really the gender ideology? Which consequences to society? Parents and teachers have the right to deny the State the teaching of this ideology?
That's what we intend to clarify through this work. 

KEY-WORDS: Gender ideology. Education. Family.

I- Como surgiu a Ideologia de Gênero

A ideologia de gênero tem sido discutida nos últimos quarenta anos, através do pensamento de filósofos e sociólogos modernos, cujo ensinamento básico é que não existem diferenças naturais e intrínsecas entre homens e mulheres. Todos nascem sexualmente neutros, e por isso não possuem interesse natural por determindas atividades próprias de menino ou menina, como brincar de carrinho ou de boneca. O que diferenciaria os sexos seria a sociedade. Ou seja, as diferenças entre homens e mulheres são uma construção social que, muitas vezes, é usada para oprimir determinado grupo social, como as mulheres.
Os defensores do gênero ensinam que, se desde a mais tenra idade as crianças forem ensinadas que não são meninos ou meninas, então teremos uma sociedade livre de opressão e desigualdade. Elas então devem aprender a serem quem quiserem, a ter experiências afetivas e sexuais com qualquer dos sexos e a construir sua identidade sexual a partir dessas experiências.
Nessa nova sociedade, “homens e mulheres dividiriam a vida pública e a vida privada em partes idênticas (de acordo com a versão moderada) ou os homens seriam submissos às mulheres (conforme a vertente radical do feminismo)”. (Scala, 2015, p. 74)
Tal modo de pensar pode parecer estranho no Brasil, mas em países europeus, como Suécia e Noruega, dentre outros, essas ideias se popularizaram na última década, e as escolas passaram a ensiná-las às crianças.
Mas o que é uma ideologia?
Segundo Juan Antonio Window:
As ideologias foram definidas como “... um sistema fechado de ideias que se postula como modelo através do qual toda a vida humana em sociedade deve ser reestruturada. Esse modelo é concebido independentemente da realidade: não é, de forma alguma, a experiência que deve alimentá-lo ou retificá-lo. Não está concidicionado pela realidade concreta, mas é a própria realidade que deve ser definida como tal pela ideologia. [...] por isso, não necessita de experiência, mas apenas de poder. (2003, p. 59)

O conceito de ideologia foi desenvolvido pelo filósofo Antoine Destutt de Tracy, e ampliado por Karl Marx, o qual afirmava que ideologias eram criadas pelas classes dominantes como forma de dominar e oprimir as demais classes sociais (RAMALHO, 2012).
O caso específico da ideologia de gênero tem seu nascimento no marxismo cultural, o qual foi abraçado por grupos feministas pós-modernos, a chamada terceira onda do feminismo. De fato, são as ideias marxistas contidas no livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, de Frederich Engels, que dão substrato à terceira onda do feminismo.
Na mencionada obra, seu autor fala do casamento monogâmico, uma instituição notadamente cristã, nos seguintes termos, verbis:
A monogamia, portanto, não entra de modo algum na história como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como forma mais elevada de casamento. [...] Hoje posso acrescentar que a primeira oposição de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia, e que a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo masculino. (2009, p.84-85)

Tais ideias levaram feministas como Simone de Beauvoir a dizer: “Nenhuma mulher deveria ser autorizada a ficar em casa criando seus filhos... As mulheres não deveiam ter essa opção exatamente porque, se existe essa opção, muitas mulheres optarão por ela” (Hoff , 1994, p.256).
Usando claramente a teoria marxista sobre a opressão do proletário pelos burgueses, a escritora Shulamith Firestone escreveu:
E assim como o objetivo final da revolução socialista não era apenas a eliminação do privilégio da classe econômica, mas também da própria diferenciação da classe; da mesma forma, o objetivo final da revolução feminista deve ser, diferentemente do objetivo do primeiro movimento feminista, não apenas a eliminação do privilégio masculino, mas também da própria diferenciação do sexo: as diferenças genitais entre os seres humanos já não teriam importância cultural alguma. (1970, p.10-11)

O escritor Dale O´Leary, em sua obra “Agenda de Gênero: Redefinindo a Igualdade”, traz o contexto histórico e as etapas de como essa ideologia, que nasceu no seio do movimento feminista, ganhou o espaço público, notadamente na Organização das Nações Unidas (ONU), confundindo-se com a defesa dos direitos das mulheres.
O mencionado autor destaca que a palavra “sexo” foi gradualmente sendo substituída pela palavra “gênero”, um termo de significação não consolidada e que poderia ser manipulado pelas feministas nos debates públicos, sendo facilmente aceito pela sociedade como sinônimo de sexo.
Podemos citar como momentos iniciais da criação dessa ideologia no cenário internacional as Conferências da ONU sobre População, realizada no Cairo, em 1994, e sobre Mulheres, realizada em Pequim, 1995. Foi nesta última que os representantes de nações ali presentes foram chamados a incorporar a “perspectiva de gênero” em todo o seu programa político e nas instituições públicas e privadas. A princípio se pensou que “perspectiva de gênero” dizia respeito à valorização e proteção das mulheres, pauta que era plenamente aceita e acolhida pelas nações soberanas àquela época, porém esse conceito veio a se mostrar algo totalmente diferente do que se imaginava.
Na conferência do Cairo, expressões como “gênero” e “direitos sexuais e reprodutivos” estavam presentes no documento final aprovado no evento, permitindo que grupos ativistas feministas utilizassem uma interpretação extensiva sobre esses conceitos a fim de pressionarem as nações signatárias a implementar mudanças na legislação local, que incorporassem a “perspectiva de gênero”.
Ainda segundo Dale O´Lary, em um dos fóruns preparatórios para a Conferência de Pequim, a que ocorreu em Mar del Plata, na Argentina, as palestrantes feministas afirmaram que as mulheres deveriam libertar-se a si mesmas das vocações de esposa e de mãe, assim como dos conceitos tradicionais de casamento e família.
Percebe-se que esse movimento se utilizou da plataforma de luta pelos direitos das mulheres dos anos 60, o chamado feminismo liberal ou de equidade, para alcançar um novo modelo de sociedade, baseada não na igualdade dos sexos, mas na inexistência de definições sexuais prévias. O feminismo dos anos 60 lutava pelo direito à igualdade de oportunidades entre homens e mulheres para, por exemplo, estudar, ter acesso ao mercado de trabalho, à renda etc, pautas consideradas legítimas pela maioria das nações. O feminismo de gênero, porém, busca “libertar a mulher de si mesma”, conforme afirma Firestone, para que a sociedade seja sexualmente livre. O objetivo final dessa ideologia é a completa eliminação das diferenças sexuais nos seres humanos como pressuposto para um “mundo novo”.
Nesse contexto, a heterossexualidade é tão natural quanto a homossexualidade ou a bissexualidade. O incesto não passa de um tabu e a pedofilia é algo tão normal quanto as relações sexuais entre adultos. De fato, segundo Firestone, as crianças precisam ser libertadas da tirania dos pais.
Em suma, por meio das citadas conferências internacionais promovidas pela ONU, chegou-se ao entendimento de que “gênero” refere-se às relações entre homens e mulheres com base em papéis socialmente definidos que são atribuídos a um ou outro sexo.
Por sua vez, adotar uma perspectiva de gênero em todos os aspectos políticos, econômicos, culturais e sociais de uma nação seria visualizar, em cada um desses aspectos, uma batalha de poder entre homens e mulheres, na qual as mulheres, via de regra, são preteridas em relação aos homens, surgindo daí a necessidade de se criar mecanismos para a promoção destas.
Contudo, a forma de promoção da mulher encontrada pelo movimento feminista de gênero é afirmar que, na verdade, ser homem ou mulher é uma mera construção social, a qual não se relaciona com o binarismo da biologia, e que, portanto, cada indivíduo é responsável pela construção de sua própria identidade sexual.
Tal ideologia, caso seja aplicada, levará à ruína o casamento, a infância, a família e, por fim, a sociedade tal qual a conhecemos. Esse seria o desejável “mundo novo” construído a partir da destruição das instituições de base da sociedade atual.
A maior defensora do gênero na atualidade é a filósofa Judith Butler, que afirma em seu livro “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade” o seguinte:
A distinção entre sexo e gênero serve ao argumento segundo o qual o gênero é culturalmente construído. Portanto, o gênero não seria nem o resultado causal do sexo nem seria aparentemente fixo como o sexo.  
Se o gênero são os significados culturais que o corpo sexuado assume, então não se pode dizer absolutamente que o gênero seja consequência do sexo.  
Além disso, mesmo que, em sua morfologia e constituição, os sexos pareçam ser binários (algo que questionaremos mais adiante), não há razão para presumir que os gêneros devam também continuar sendo dois. Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o gênero se torna uma artificialidade livremente flutuante. A consequência é que homem e masculino podem facilmente significar tanto um corpo feminino como um corpo masculino, e mulher e feminino podem significar tanto um corpo masculino como um corpo feminino.  
Se o caráter imutável do sexo for contestado, talvez esta construção chamada ‘sexo’ seja tão culturalmente construída como ‘gênero’; na verdade, talvez ela já tivesse sido sempre ‘gênero’, com a consequência de que a distinção entre sexo e gênero termine por não ser distinção alguma. (BUTLER, 2003)

A intenção da autora é deixar claro que o sexo biológico dos indivíduos (macho e fêmea) não determina a sua identidade sexual, pois esta seria um papel socialmente construído, que pode – e deve – ser descontruído.

II- Efeitos da ideologia de gênero em países que a adotaram: alguns casos concretos.

Os ensinos sobre gênero já foram implementados em outras nações, especialmente européias, com consequências que ainda estão sendo avaliadas pelos especialistas, mas que trazem uma profunda reflexão sobre os propósitos dessa ideologia e sobre seu real proveito para a sociedade e as famílias.
Ocorreu um caso muito singular no Canadá, nos anos 60, com a família Reimer[2]. Em agosto de 1965, Ron e Janet Raimer descobriram que ela estava grávida de gêmeos. Ao nascerem, os dois garotos tiveram que ser submetidos a uma cirurgia de circuncisão, devido a problemas que os gêmeos apresentavam para urinar. No entanto, houve um problema na cirurgia, e o bebezinho que se chamava Bruce teve seu pequeno órgão genital acidentalmente amputado.
Os Raimer decidiram pedir a ajuda de um psicólogo chamado Dr. Jonh Money, pioneiro nos estudos sobre identidade sexual e de gênero, o qual sugeriu que os testículos do garoto fossem removidos, e que ele fosse criado como menina. Na visão do especialista, até os 02 anos de idade, as crianças são sexualmente neutras e podem ter sua identidade sexual moldada de acordo com a educação recebida. Os pais decidiram aceitar a sugestão de Money, e Bruce passou a chamar-se Brenda.
O Dr. Money acompanhou o crescimento dos gêmeos, e, na sua opinião, o experimento havia sido bem sucedido, tanto que, em 1975, escreveu um artigo contando do caso dos gêmeos, preservando nomes para proteger a imagem dos menores, onde afimou que ser menino ou menina tem mais relação com a educação e a intervenção no comportamo do que com a natureza ou a biologia.
No entanto, na puberdade, Brenda apresentava comportamento agressivo, e passou a se recusar a visitar o psicólogo. Posterioremnte, em um relato dos irmãos feito em um documentário produzido pela BBC, constatou-se que o Dr. Money usava métodos antiéticos para forçar Brenda a se aceitar como menina[3]. Aos 14 anos de idade, depois de ter uma crise nervosa e de ter afirmado aos pais que iria se matar, estes contaram a verdade sobre o sexo de Brenda. Ela, então, decidiu que queria voltar ao seu sexo natural, e adotar um nome masculino. O nome escolhido foi David.
David chegou a casar-se, porém nunca pode ter filhos. Em maio de 2004, com problemas de depressão, ele se suicidou.
Toda essa história verídica e trágica demonstra que não podemos afirmar que a educação pode mudar a natureza sexual dos indivíduos, mas que uma doutrinação ideológica como essa pode causar grande confusão e perturbação mental nos indivíduos.
Recentemente na Alemanha, os pais de uma garota, que frequentava a quarta série primária, foram presos porque a criança estava faltando às aulas de educação sexual[4]. No caso, a escola estava ensinando a ideologia de gênero, e as aulas continham ensinamentos sexuais explícitos que perturbavam a mente da garota, fazendo com que ela mesma não quisesse frequentar as aulas.
Na Suécia, uma escola passou a chamar todos os alunos e alunas de “amigos”, e, em vez de usar os pronomes pessoas “han” ou “hon”, que são os equivalentes em português a “ele/ela”, passou a usar um pronome neutro inventado, chamando de “hen”[5]. Caso um pintor, eletricista ou policial viesse à escola falar com as crianças, a professora diria que “hen” está vindo à escola, e as crianças poderiam ficar imaginando se seria um homem ou uma mulher. Nessa mesma escola, os livros infantis adotados traziam histórias de duplas homossexuais, mães solteiras ou outras formações familiares não tradicionais.
No Brasil, a escola Pedro II, no Rio de Janeiro, adotou a mesma política de educação sexual, e passou a usar em todos os seus formulários, papéis, e até na fala de professores com alunos o termo “alunx”, em vez de aluno ou aluna[6].
Interessante notar que, em um país como a Noruega, onde a igualdade entre os sexos é talvez a mais elevada do mundo, significando que homens e mulheres têm total liberdade para serem o que quiserem, inclusive profissionalmente, quase 90% dos enfermeiros são mulheres, e 90% dos engenheiros são homens[7]. Essa pesquisa demonstrou que, em condições de livre escolha, mulheres tendem a profissões que exigem sensibilidade, comunicação e maior relação com outras pessoas; já os homens buscam mais as profissões tecnológicas, relacionadas com as ciências exatas. Claro, toda regra tem suas exceções, mas as conclusões são baseadas na maioria dos casos.
Segundo Jorge Scala, a ideologia de gênero, caso fosse aplicada a todas as nações, traria as seguintes consequências: 1) já não existiria mais nem homem nem mulher; 2) todos os tipos de uniões entre os sexos teriam o mesmo valor antropológico e social; 3) eliminação do casamento e do poder familiar (pátrio poder); 4) eliminação da família; e 5) eliminação da sociedade pela destruição da sua célula base. (2015, p.103)
De fato, o surgimento de um “mundo novo”, onde as crianças sejam libertas da “tirania dos pais” e as mulheres, da “tirania do marido”, onde a educação das crianças seja uma tarefa do Estado e de toda a sociedade, e não do grupo familiar, onde todos tenham uma sexualidade polimorficamente pervertida, é o objetivo do  movimento feminista radical, nas palavras de Firestone.
Contudo, as famílias que têm sua formação com base na moral judaico-cristã, que é o caso de boa parte das famílias brasileiras, não podem aceitar que não existam diferenças naturais entre homens e mulheres, negando a gênese dos seus valores. Toda a narrativa bíblica está repleta de referências em que se notam as diferenças biológicas, sociais e emocionais entre homens e mulheres. Ademais, não há comprovação científica para esta teoria, são apenas ideias que, de tanto serem repetidas por seus defensores, passaram a se tornar uma “quase verdade’, ou seja, uma ideologia.

III- Liberdade religiosa e direitos dos pais a educarem seus filhos segundo seus valores morais e religiosos

Percebe-se que a ideologia de gênero entra em conflito, em diversos aspectos, com a cosmovisão judaico- cristã que fundamenta a civilização ocidental em seus aspectos políticos, jurídicos, sociais, morais e religiosos.
Ao se ler as narrativas do livro sagrado para os cristãos (a Bíblia), vemos que existem diferenciações nítidas de papéis desempenhados por homens e mulheres, e existe até mesmo uma valorização dessas diferenças, como consequência da complementariedade entre os sexos. Negar que homens e mulheres nascem com diferenças instrínsecas é negar, não apenas para os cristãos, mas também para judeus, muçulmanos e para os seguidores de outras religiões, a essência da criação realizada por Deus[8].
O questionamento que se faz é: os pais de crianças em idade escolar devem se submeter a um currículo educacional em que a ideologia de gênero esteja inserida, quer de forma transversal, quer de forma objetiva, em todas as disciplinas ministradas? Ou será que os pais têm o legítimo direito de negar que tal ideologia seja transmitida a seus filhos na escola?
Com base no direito de liberdade religiosa, podemos afirmar que os pais têm sim o direito de negar ao Estado que seus filhos recebam educação sobre valores morais e religiosos conflitantes com os seus. Violar esse direito significa agredir os direitos das famílias, bem como a dignidade e a consciência em formação de crianças e adolescentes.
A questão se insere no direito de liberdade religiosa no seio familiar, previsto como direito fundamental no art. 5º, inc. VI, da Constituição Federal de 1988, o qual, segundo Paulo Bonavides, é um direito de primeira geração, direito de resistência, portanto, ao poder de império do Estado. Em suas palavras:
“Os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”. (2015, p. 578)

Em relação ao debate sobre a laicidade do Estado, frequentemente levantada por aqueles que, na verdade, defendem um Estado ateu ou laicista, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco dissertam com maestria sobre a importância dada pela Constituição Federal de 1988 ao sentimento e ao valor religioso. Senão vejamos:
“O Estado brasileiro não é confessional, mas tampouco é ateu, como se deduz do preâmbulo da Constituição, que invoca a proteção de Deus [...] O reconhecimento explícito da liberdade religiosa pela Constituição, bem como as suas demais disposições em apoio e em proteção a práticas dessa ordem, revela haver o sistema jurídico tomado a religiosidade como um bem em si mesmo, como um valor a ser preservado e fomentado [...] O reconhecimento da liberdade religiosa também tem por si o argumento de que tantas vezes a formação moral contribui para moldar o bom cidadão. Essas razões, contudo, não são suficientes em si para explicar a razão de ser da liberdade de crença. A Constituição assegura a liberdade dos crentes, porque toma a religião como um bem valioso por si mesmo...” (p. 317 e 319)

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, afirma que a família é a base da sociedade, e goza de especial proteção do Estado. Portanto, o Estado deve valorizar e proteger os direitos da família, e não violá-los.
Os art. 227 e 229, por serem de suma importância para este trabalho, serão transcritos a seguir, litteris:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. (grifos nossos)

Desse artigo infere-se que o dever de educar as crianças, adolescentes e jovens é primeiramente da família, atuando a sociedade e o Estado como auxiliares nessa tarefa.
Ademais, cabe à família zelar pelo direito à dignidade e ao respeito dos seus filhos, o que inclui certamente a dignidade sexual e o respeito aos valores da moral sexual de cada família. Ademais, caberá aos pais lidar com as consequências advindas de um possível mal comportamento de seus filhos. Sendo assim, nada mais justo que aqueles tenham o dever-direito de educa-los para a cidadania e para o bem.
A ideologia de gênero é um abuso e uma violência contra a consciência e a digndade sexual de crianças e adolescentes, sendo comparada por Verônica Cezar-Ferreira à uma espécie de crime hediondo, conforme se vê:
Expor a criança à não identificação sexual, mais do que isso, forçá-la a isso, é forma de violência, de crueldade e de opressão, para se dizer o mínimo. Atinge diretamente sua dignidade. Obrigar os pais a aceitar a doutrinação por imposição institucional é um crime, do ponto de vista psicológico, e, juridicamente, a nosso ver, grave transgressão à lei que determina que os filhos devem ser criados pelos pais. Quem os gera, tem o dever e o direito de educá-los. [...] A criança é plástica física e psiquicamente. Educar é preciso e possível, mas moldar não é educar, e moldá-la para ser infeliz sob o argumento de que se faz exatamente o contrário, é, do ponto de vista psicológico, um crime hediondo. (2015, p.14 e 18)

Segundo a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, instrumento assinado pelo Brasil, a família goza de proteção do Estado e da sociedade (art. 16, nº 3), e os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos (art. 26, nº 3). Além disso, referida Declaração afirma que ninguém será sujeito à interferências em sua vida privada, em sua família, em seu lar, nem ataques à sua honra. Significa que aquilo que os pais ensinam aos seus filhos dentro de casa, especialmente sobre a moral sexual, deve ser respeitado pela sociedade e pelo Estado, inclusive no âmbito escolar.
A Declaração afirma também que a instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais (art. 26, nº 2). Sendo assim, deve-se respeitar o direito dos pais a ensinarem seus filhos os valores morais e religiosos que melhor lhes parecem, desde que repeitem a dignidade das crianças e dos adolescentes, sem interferências estatais.
O Pacto de São José da Costa Rica, no artigo 11, nº 2, assegura que ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada ou na de sua família. O mesmo diploma internacional preceitua, no seu artigo 12, nº 4, que os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções. No artigo 17, nº 1, o referido tratado internacional trata a família como “o elemento natural e fundamental da sociedade” garantindo que a mesma “deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado”. Ademais, “toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado” (art. 19)
Seria mesmo ilógico permitir que crianças e adolescentes, cujas mentes estão em processo de formação, recebessem na escola ensinamentos morais e religosos conflitantes com aqueles recebidos em casa. A quem esse menino ou menina dará mais atenção? Por que a escola deveria agir como inimiga da família no quesito da formação moral e religiosa? Afinal, a quem cabe educar: à escola ou à família? Na verdade, crianças não nascem em Estados ou em escolas, mas em famílias. Portanto, a estas cabe, em primeiro lugar, o dever e o direito de inculcar os valores morais, espirituais e estruturantes do caráter e da personalidade daquele que está sob seus persistentes cuidados. Negar esse direito aos pais e às famílias significa usurpar o papel de educador conferido a eles pela natureza das coisas e pelo ordenamento jurídico.
A legislação brasileira é plenamente consentânea coma tese que afirmamos, como se depreende do Código Civil de 2002, o qual afirma, eu seus arts.1.630 e 1.631, que os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores, e que, durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais. Logo, o poder de decidir aquilo que é melhor para a família, quer dizer, o poder diretivo para a família, inclusive no aspecto moral e religioso, está sob a responsabilidade dos pais e da família de forma indubtável.
É interessante notar a clareza com que o Código Civil de 2002, no artigo 1.634, confere à família o direito à criação e educação de seus filhos, especialemente nos incisos abaixo transcritos:
Art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos:    
I - dirigir-lhes a criação e a educação;
[omissis]
VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
[omissis]
IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.   

Por fim, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) diz que estes têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis (art.15). O diploma legal garante que o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação dos valores, idéias e crenças (art.17), e que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor (art. 18). Certamente o ensino da ideologia de gênero nas escolas constitui-se em tratamento constrangedor e desumano para seres humanos de tão baixa em faixa etária, com total incapacidade de assimilar criticamente as informações que lhes são passadas.
Há que se entender que a família é anterior ao Estado, e que toda a sociedade moderna é semelhante a um tecido orgânico composto de células, que são as famílias. Não é possível aceitar que determinado Governo, que tem suas ideologias e metas pessoais, advindas do partido político que representa, possa ditar livremente quais são os valores morais e religiosos que devem ser compulsoriamente ensinados e aceitos na sociedade, utilizando-se da audiência cativa das escolas públicas e privadas para promover sua agenda.
As convicções morais e religiosas das famílias são bens jurídicos reinvindicáveis, posto que são caros à essa instituição milenar. Sem princípios éticos e morais, um ser humano não existe. E, enquanto um menor estiver sob a tutela da família, cabe a esta o dever e o direito de ensinar o bem ou o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto. Ao completarem a maioridade, os jovens já estão maduros para fazerem suas escolhas. Na mais tenra infância, porém, não cabe ao Estado formatar a mente dos indivíduos com suas ideologias.
Jónatas Eduardo Machado explica com clareza o valor que as convicções íntimas têm para o individuo e, consequentemente, para as famílias, vejamos:
as convicções religiosas, como também as convicções de outra natureza, encerram, frequentemente, a assunção íntima e vital de um compromisso existencial e ético, com significativas repercussões comportamentais nos planos político, social, cultural, econômico, etc. (1996, p.223)

Isso significa que os valores transmitidos de pais para filhos fazem parte desse “íntimo e vital compromisso existencial e ético” assumido pela família, não podendo a sociedade ou o Estado nele interferir ou decidir sobre o que seja melhor para crianças e adolescentes nesse plano. Também não há que se falar em “homofobia compartilhada” pela escola e a família quando se respeitam os valores desta última, como afirmam alguns (FELIPE, BELLO, 2009, p. 151), posto que se trata de respeito ao direito de educar dos pais e à dignidade da criança e do adolescente.

CONCLUSÃO

Através desse trabalho, conseguimos determinar que as ideologias são um sistema fechado de ideias que se postula como modelo através do qual toda a vida humana em sociedade deve ser reestruturada. Vimos que as ideologias não se baseiam na realidade, e qual foi a origem da chamada ideologia de gênero. Percebemos que seu nascedouro se deu no marxismo cultural, que afirma que a primeira luta de classes se deu dentro do casamento monogâmico, entre homem e  mulher.
Vimos, então, que o movimento feminista abraçou essas ideias, e passou a lutar não pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, mas pela libertação da mulher do próprio conceito de mulher. Passou-se a afirmar que as crianças nascem com gênero neutro, não são meninos nem meninas, mas construirão a sua idenditade sexual a partir das experiências pelas quais passarem.
Mostramos alguns casos concretos da aplicação dessa ideologia, como foi o caso da família Raimer, onde o Dr. Jonh Money fez do acidente ocorrido com o garoto Bruce Rimer uma espécie de “caso teste” para suas teorias de gênero neutro até os dois anos de idade, e vimos que os resultados foram desastrosos, findando com o suicídio de ambos os gêmeos.
Abordamos, por fim, a legislação internacional e nacional brasileira, bem como o entendimento doutrinário de importantes estudiosos em matéria de direitos humanos, liberdade religiosa e direito dos pais na educação moral, sexual e religiosa de seus filhos. Notamos que o posicionamento de ambos é no sentido de assegurar aos pais o direito de criar e educar seus filhos menores segundo seus valores morais e religiosos, respeitando sempre a dignidade de crianças e adolescentes.
No caso específio da fé cristã, hegemônica no Brasil, vimos que a ideologia de gênero fere valores e princípios contidos no texto sagrado dessa religião, a exemplo da criação divina de homens e mulheres com igual dignidade, porém com diferenças naturais e intrínsecas que geram a complementariedade entre os sexos, base do casamento e da família.
Portanto, em respeito à liberdade religiosa das famílias, aos direitos humanos, especialmente a dignidade da pessoas humana, e em respeito à dignidade, à honra, à vida e à condição especial de desenvolvimento de crianças e adolescentes, a ideologia de gênero pode (e deve) ser negada pelos pais que a considerarem uma afronta aos seus valores.
De fato, não podemos falar em avanços sociais quando, na verdade, estão atropelando valores de fé e da moral das famílias. Conforme afirmaram Marcelo dos Santos e Rildo Ferreira, “enquanto cristãos, certamente, um dos grandes e inarredáveis desafios é o de permanecer aculturados em sociedade, contribuindo para os processos políticos, sem perder sua identidade de cristão" (2014, p. 209). E nesse desafio, cabe ao Estado atuar como protetor das famílias, das crianças e dos adolescentes, respeitando seus valores e fomentando a sua unidade vital.

Bibliografia

1.      BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29ª edição. São Paulo: Malheiros, 2014.

2.      BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

3.      Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf; acesso em 28/01/16.

4.      FELIPE, Jane. BELLO. Alexandre Toaldo. Construção de Comportamentos Homofóbicos no Cotidiano da Educação Infantil In Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Organizador: Rogério Diniz Junqueira. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.

5.      FIRESTONE, Shulamith. The Dialectic of Sex. Nova York: Bantam Books, 1970.

6.      HOFF Sommers, Christina. Who Store Feminism, Nova York: Ed. Simon and Schuster, 1994.

7.      MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucionalmente Inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, In Boletim Jurídico da Faculdade de Direito. Portugal: Coimbra, 1996.

8.      ___________. Estado Constitucional e Neutralidade Religiosa: entre o teísmo e o (neo)ateísmo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

9.      MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015.

10.  O´LEARY, Dale. Condensado da obra “Agenda de Gênero: Redefinindo a Igualdade”, disponível em: http://www.votopelavida.com/agendagenero.pdf, acesso em 14/01/2016.

11.  SANTOS, Marcelo Henrique dos. FERREIRA, Rildo Mourão Ferreira. O Desafio Cultural na Cosmivisão Cristã: Política e Sociedade à Luz da Liberdade Religiosa. In O Direito de Liberdade Religiosa no Brasil e no Mundo: Aspectos teóricos e práticos para especialistas e líderes religiosos em geral. Org. Uziel Sanata, Jonas Moreno e Roberto Tambeline. São Paulo: ANAJURE, 2014.

12.  SCALA, Jorge. Ideologia de Gênero: O neototalitarismo e a morte da família. Tradução de Lyège Carvalho. São Paulo, SP: Katechesis, 2015.

13.  WIDOW, Juan Antonio. La corrupición ideológica del lenguaje en las ciencias prácticas. In Revista Internacional de Filosofia Prática Circa Humana Philosophia, do Instituto de Estudos Filosóficos Santo Tomás de Aquino, Buenos Aires, 2003.

14.  Ramalho, José Rodorval. Ideologia: O Que devemos saber? – Org. Rosenval de Almeida e Souza. Campina Grande: editora da UFCG, 2012.




[1] Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Ceará e Advogada (OAB/CE 26.549). Cursando Pós-Graduação Internacional Latu Sensu em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa pela Universidade Mackenzie (São Paulo), Universidade de Coimbra (Portugal) e Universidade de Oxford (Inglaterra).
 Email: fernandabezerra1208@gmail.com
[2] Veja notícia de um documentário da BBC sobre essa história real: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2010/11/101123_gemeos_mudanca_sexo.shtml; acesso em 19/01/16.
[3] Os gêmios afirmaram que o Dr. Money chegou a mandar que tirassem as roupas e ficassem em posições sexuais para fazer Brenda entender que ela era uma menina.
[4] Veja a notícia no vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=SFYTTPCA3dg; acesso em 19/01/16. Veja também:

[5] Veja em: http://ipco.org.br/ipco/noticias/loucura-da-ideologia-de-genero-escola-maternal-na-suecia-proibeque-criancas-sejam-tratadas-como-meninos-e-meninas; acesso em 28/12/2015
[7] Informações retiradas do vídeo “O Paradoxo da Igualdade.”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=G0J9KZVB9FM; acessp em 19/01/2016.
[8] Veja o texto bíblico de Gênesis 2:18-24.

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